terça-feira, 2 de abril de 2013

O Livro dos Sentimentos (1)

                 Um tempo atrás eu comecei a escrever uma pequena sequência de contos, mas ela acabou se perdendo. No início, ela se baseava muito na coisas que eu sentia no momento, mas hoje eu me sentei, comecei a escrever e... Bem, foi isso que saiu. Quando reli não pude deixar de encaixá-lo na tal série, O Livro dos Sentimentos. (Admito, culpado, eu não sou bom com títulos.)

Então eu vou postar isso aqui. Estrear "O Livro dos Sentimentos" para vocês. Espero que gostem.



O Livro dos Sentimentos: Culpa


                Ele segurava o arco com firmeza. Os músculos retesados, ambos olhos abertos. Soltou um dos dedos e sentiu a tensão na corda. Observou bem seu alvo. O Jacu-do-Mato parecia uma grande galinha preta, mas ele sabia que, diferente de galinhas, aquele pássaro voava. Não podia se dar ao luxo de errar; Além do mais, era sua única flecha.

                Aquela seria sua primeira vítima. Comprara o arco havia alguns meses e praticado sem nenhuma regularidade em árvores e pedaços de madeira que encontrava aos arredores de sua casa. Já havia tentado acertar pássaros pequenos, sem sucesso. Mas não havia como errar uma ave tão grande de tão perto. Cinco metros, se não menos. Ele deu mais um passo e viu a ave se abaixar para tomar impulso e levantar vôo. Era agora ou nunca. Soltou a flecha.

                O tempo parecia ter parado. A ave, majestosa, preparava-se para abrir as asas. A flecha ia em sua direção e acertaria em cheio. A criatura não sairia dali.

                O coração do garoto escapou uma batida quando a flecha penetrou a asa da ave e a prendeu ao corpo dela. A ave gritou, esperneou e caiu no chão, sendo lançada alguns centímetros para trás. Ela batia a asa livre com força, o sangue estava começando a se espalhar. Ela provavelmente agonizaria ali por vários minutos.

                O garoto não conseguia se mexer. Cada grito do pássaro penetrando seus ouvidos e o fazendo sentir a culpa subir por sua garganta. Ele transbordava de culpa. Aquela vida já estava perdida, mas se recusava a deixar o corpo. A imagem era violenta. Mais do que ele esperava que fosse.
                Ele já havia visto sangue, já havia visto animais morrerem. Mas aquilo era diferente. Ele havia feito aquilo, mesmo que tivesse seus motivos. O choque passava por cada um de seus músculos. O arco ainda preso firmemente em sua mão.

                Ele levou alguns segundos para notar que o animal não gritava mais. Apenas respirava pesado, se mexia devagar; o corpo tentando decidir se aceitava ou não seu destino. O garoto se aproximou. Quão certo havia sido fazer aquilo? Quão errado havia sido? Ele olhou nos olhos do pássaro e viu medo. Pavor. E ele sentiu a morte passando ao seu lado e levando o pássaro embora. Ele sentiu o olhar frio de desaprovação da morte, através dos olhos do pássaro. “É uma pena”, o olhar dizia.

                O garoto limpou a sujeira, depenou o pássaro e se dedicou a assá-lo. Naquela noite, um homem faminto que ele viria a encontrar na rua teria uma bela refeição, talvez a melhor de sua vida. Mas o garoto jamais sentiria a redenção que desejava. “É uma pena”, diria para sempre em sua mente o olhar da ave negra que um dia ele flechou.