quinta-feira, 12 de junho de 2014

Hora do Conto: Grunhido

                Eles batiam na porta insistentemente. Ellen podia ouvir os grunhidos e o barulho penetrava na mente dela; Aquele som trazia apenas uma mensagem: Você vai morrer.
                Desde que ela vira um zumbi de verdade pela primeira vez já fazia dois anos. Ellen lembrava bem de ter se assustado quando viu o filho de doze anos de seu vizinho com aquela quantidade de sangue escorrendo pelo cabelo e descendo pelo rosto até o peito. Ela ficara desesperada e quase gritara por ajuda. Foi quando ouviu o grunhido pela primeira vez. Ela se lembrava do tom agudo de voz de criança que agora assombrava seus pesadelos, mas que no dia causou alívio.
                — Guilherme, que susto que você me deu!
                Ela riu nervosa da brincadeira do garoto e ele respondeu com mais um grunhido, dando outro passo manco na direção dela, os olhos esbranquiçados e vidrados. O sorriso saiu do rosto dela enquanto a duvida sobre se aquilo era uma maquiagem muito bem feita ou se era real pairavam sobre a mente dela. A negação a atingiu primeiro. Era óbvio que a maquiagem havia sido muito bem feita... Certo?
                Mais um grunhido, um pouco mais forte. A partir desse ponto o medo voltou a tocar seu coração e a adrenalina subiu uma vez mais, pegando carona em seu sangue e fazendo-a reparar em mais coisas do que ela costumava reparar.

                Ela havia saído de dentro de casa porque ouvira um barulho estranho. Aquilo parecera uma bomba ou fogos de artifício, bem ao longe. Talvez realmente fosse qualquer uma dessas coisas. Talvez fosse um tiro. Ela não saberia dizer, mas qualquer um dos três era viável. Ela atravessou o portão para verificar e encontrou o garoto ensangüentado. Ele havia passado pelo portão ainda aberto da casa dele. Ao fundo ela reparou em três colunas de fumaça. Grossas, escuras. Duas, pela distância, ela sabia virem do centro da cidade. Uma delas não podia estar a mais de três quadras daquela região calma e suburbana. Era fim de tarde e ao fundo das colunas de fumaça, o céu de verão, alaranjado e com poucas nuvens se mostrava glorioso, ignorando o que acontecia sob sua luz agradável.
                Novo grunhido. Um grito. Um barulho estranho que mandou um calafrio pela espinha de Ellen. Parecia o de algo se quebrando. Ela desviou os olhos do garoto. Havia uma grande ferida na cabeça dele e um pouco de sangue esguichava de lá a cada poucos segundos, mas agora ela olhava para o portão vizinho, o aberto, de onde ela sabia que Guilherme saíra.
                Sandra, mãe de Guilherme, estava no chão. Ela havia caído ao passar pelo portão. Sobre ela estava Eduardo, seu marido. Ele tinha um corte profundo no braço, coberto pela camisa social azul clara. Seus cabelos castanhos, assim como os do filho, estavam limpos e levemente bagunçados, assim como Ellen estava acostumada a ver. Mas seus olhos tinham o mesmo olhar vidrado do filho, sua garganta soltava um grunhido parecido, mas grave, em sua voz de homem crescido. O braço de Sandra, uma bela mulher loira, estava quebrado. Era possível ver o membro torto. Sandra gritou novamente. Agora o marido dela a mordia. Ele era feroz. Mordia o ombro da esposa com força. Tirava-lhe a carne. Puxava os nervos. Engolia com gosto.
                Não importava quanto a mãe gritasse, Guilherme não desviou o olhar. Manteve o andar trôpego de alguém que havia machucado o pé – agora que Ellen olhava, a perna dele parecia torta, como se ele tivesse rolado de alguma escada. Será que não tinha? – e ele emitia o grunhido. A marca na cabeça, de onde o sangue saía, repentinamente fez Ellen lembrar do ombro da vizinha que agora parava de gritar, já que boa parte de seu sangue não era mais seu, mas sim do chão.
                Nesse momento Ellen entendeu o que estava acontecendo. Não, não por completo. Longe disso. Mas Ellen soube que aquele não era um bom lugar para ficar. Ellen correu para dentro de seu próprio portão, sendo seguida pelos mancos, porém agora mais apressados passos do garoto que não era mais um garoto, mas um pequeno monstro.
                Ela fechou o portão na cara dele, sabendo que ele não passaria, e correu escada acima para encontrar seu marido e seu filho. Quando voltou para a frente da casa, havia quatro deles grudados ao portão. O garoto de perna torta, um homem de rosto ensangüentado e cabelo bagunçado, um velho que Ellen nunca soube quem fora e uma mulher loira de braço quebrado e pescoço rasgado. Cada um deles mantinha os olhos esbranquiçados vidrados no vazio, mas apontados para eles. Cada um deles esticava seus dedos ensangüentados – a mulher apenas erguia um dos braços, no outro, era apenas o ombro que levantava. O braço pendia em algo que deveria ser doloroso para alguém que sentisse dor – e grunhia pavorosamente. Aquela voz de criança era a mais aterrorizante entre as quatro. Logo seriam cinco. Quando fossem seis, a família de Ellen já teria dado um jeito de escapar e tentar sobreviver.
               
                Uma pena que dois anos depois a família enfrentava aqueles grunhidos em um lugar apertado novamente. Não eram os mesmo grunhidos. Nem era a mesma família. Não inteira, ao menos. O marido de Ellen morrera um ano antes. Ela mesma dera o tiro que finalizara sua vida. Ou, ao menos, sua pós-vida. Ela sofrera com isso, mas seguiu em frente, seu filho sempre ao seu lado. Alguns amigos que encontrou pelo caminho a acompanharam e deram força. Era uma pena que agora apenas três deles ainda estivessem com ela.
                Aquele quartinho era pequeno. Eles tinham certeza de que do lado de fora havia pelo menos trinta daquelas criaturas comedoras de carne. Eles sabiam que não havia o que fazer além de esperar que eles desistissem, e que isso poderia levar dias. Eles sabiam que não tinham provisões naquele pequeno quarto para durar dias. A única janela era alta e em grade. Mesmo que não fosse, os grunhidos vinham de lá também. Haveria mais alguns lá fora, esperando por eles.
                Ellen e seu grupo já haviam passado por problemas, mas nunca daquele tamanho. O grupo também diminuiu bastante desde a última vez que enfrentaram um grupo tão grande. Dos doze, sobravam apenas cinco, contando com Ellen e seu filho, Henrique. Ela abraçava o garoto, encolhida no canto com ele. Os outros três também estava sentados, encostados nas paredes, esperando. Quantas balas eles tinham? Duas talvez? Não o suficiente. Nem para os que estavam lá fora, nem para aqueles dentro da pequena sala. A porta de aço começava a se dobrar com os golpes erráticos das criaturas que grunhiam. Ellen viu um dos parafusos dela saltar e cair no chão com barulho metálico. Foi nesse momento em que ela soube que não havia muito mais tempo. Um de seus colegas soltou uma risada. Realmente, estava acabando.

                                                                              ***

                Ellen acordou sozinha. A porta estava aberta. Derrubada, na verdade. O lugar estava igualmente sujo, mas parecia um pouco mais claro, como se a luz que entrava pela janela e pela porta fossem o bastante para deixá-la bem iluminada. Ellen se levantou com alguma dificuldade. Sentia-se cansada. Deu um passo. Seu corpo estava pesado. Será que estava morta? Será que aquela era a transição para o outro plano? Ela não tinha certeza. Ela não se lembrava de ter visto as criaturas entrarem na sala. Ela lembrava de seu filho, e era ele que Ellen procurava.
                —HENRIQUE!
                Ela gritou com toda a força que pode. Não era muito, mas o suficiente para jogar sua voz longe. Ellen continuou caminhando. Ela saiu da loja onde eles se esconderam da horda. Não havia nenhum monstro por perto, mas havia uma névoa densa que a impedia de enxergar muito longe. Cinco? Seis metros? Ela não sabia ao certo.  A mesma névoa a impedia de ver o céu e qualquer coisa a seu redor. Ellen andou mais alguns metros antes de ouvir um som. Ela não teve certeza do que ela ouvia, mas se tivesse de chutar, chutaria que era a voz de seu filho chamando por ela.
                — Henrique!
                Ela gritou novamente, e começou a correr na direção de onde o grito viera. Seus passos cansados, mas rápidos o bastante, a guiaram para a entrada da floresta. Ela gritou novamente.
                — Henrique!
                — Mamãe!
                Era a voz dele. Clara, nítida. Era seu filho. Ela deu mais um passo e pôde vê-lo na névoa. O garoto parecia assustado, solitário. Henrique tinha algumas lágrimas nos olhos, mas era ele. Ela deu outro passo em sua direção, as lágrimas começando a sair. O garoto correu, sumindo na névoa.
                — Henrique, volte!
                Ela ouvia o garoto chamá-la. Correndo atrás dele, ela pôde ver que ele fugia dela. Ele entrou então atrás de uma árvore e ela o seguiu. Foi quando ouviu um som forte e sentiu seu corpo ser jogado para trás.
                — Mamãe!
                Ela ouviu novamente. A névoa ao redor a impedia de ver, mas ela tinha quase certeza de que seus olhos estavam apontados para o céu. As lágrimas queriam sair, mas não saiam.

                Os olhos vidrados e esbranquiçados de uma mulher apontavam para cima. Fernando acertara-a com força no peito. Não podia deixar que seu filho fosse pego por uma daquelas criaturas. Ele a observou. Ela tinha muitas mordidas. Muitas mesmo. Pelo corpo todo. Era incrível que as criaturas não haviam tirado nenhum membro dela quando a pegaram. Ao menos nenhum por inteiro. Ele ouviu um último grunhido, aquele maldito e aterrador grunhido que assombrava seus sonhos desde a primeira vez que ouvira um monstro daqueles grunhir. Aquele som trazia apenas uma mensagem: Você vai morrer.
                Ele observou o corpo coberto de sangue e mordidas dela. Por um instante ele sentiu pena. Normalmente evitava matá-los, mas dessa vez foi generoso. Com toda a misericórdia que podia acumular, Fernando ergueu seu machado e o desceu com força sobre a cabeça da mulher que algumas horas antes fora uma mãe chamada Ellen.

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