Eles batiam na
porta insistentemente. Ellen podia ouvir os grunhidos e o barulho penetrava na
mente dela; Aquele som trazia apenas uma mensagem: Você vai morrer.
Desde que ela
vira um zumbi de verdade pela primeira vez já fazia dois anos. Ellen lembrava bem
de ter se assustado quando viu o filho de doze anos de seu vizinho com aquela
quantidade de sangue escorrendo pelo cabelo e descendo pelo rosto até o peito.
Ela ficara desesperada e quase gritara por ajuda. Foi quando ouviu o grunhido
pela primeira vez. Ela se lembrava do tom agudo de voz de criança que agora
assombrava seus pesadelos, mas que no dia causou alívio.
— Guilherme, que
susto que você me deu!
Ela riu nervosa
da brincadeira do garoto e ele respondeu com mais um grunhido, dando outro
passo manco na direção dela, os olhos esbranquiçados e vidrados. O sorriso saiu
do rosto dela enquanto a duvida sobre se aquilo era uma maquiagem muito bem
feita ou se era real pairavam sobre a mente dela. A negação a atingiu primeiro.
Era óbvio que a maquiagem havia sido muito bem feita... Certo?
Mais um grunhido,
um pouco mais forte. A partir desse ponto o medo voltou a tocar seu coração e a
adrenalina subiu uma vez mais, pegando carona em seu sangue e fazendo-a reparar
em mais coisas do que ela costumava reparar.
Ela havia saído
de dentro de casa porque ouvira um barulho estranho. Aquilo parecera uma bomba
ou fogos de artifício, bem ao longe. Talvez realmente fosse qualquer uma dessas
coisas. Talvez fosse um tiro. Ela não saberia dizer, mas qualquer um dos três
era viável. Ela atravessou o portão para verificar e encontrou o garoto
ensangüentado. Ele havia passado pelo portão ainda aberto da casa dele. Ao
fundo ela reparou em três colunas de fumaça. Grossas, escuras. Duas, pela
distância, ela sabia virem do centro da cidade. Uma delas não podia estar a
mais de três quadras daquela região calma e suburbana. Era fim de tarde e ao
fundo das colunas de fumaça, o céu de verão, alaranjado e com poucas nuvens se
mostrava glorioso, ignorando o que acontecia sob sua luz agradável.
Novo grunhido. Um
grito. Um barulho estranho que mandou um calafrio pela espinha de Ellen.
Parecia o de algo se quebrando. Ela desviou os olhos do garoto. Havia uma
grande ferida na cabeça dele e um pouco de sangue esguichava de lá a cada
poucos segundos, mas agora ela olhava para o portão vizinho, o aberto, de onde
ela sabia que Guilherme saíra.
Sandra, mãe de
Guilherme, estava no chão. Ela havia caído ao passar pelo portão. Sobre ela
estava Eduardo, seu marido. Ele tinha um corte profundo no braço, coberto pela
camisa social azul clara. Seus cabelos castanhos, assim como os do filho,
estavam limpos e levemente bagunçados, assim como Ellen estava acostumada a
ver. Mas seus olhos tinham o mesmo olhar vidrado do filho, sua garganta soltava
um grunhido parecido, mas grave, em sua voz de homem crescido. O braço de
Sandra, uma bela mulher loira, estava quebrado. Era possível ver o membro
torto. Sandra gritou novamente. Agora o marido dela a mordia. Ele era feroz.
Mordia o ombro da esposa com força. Tirava-lhe a carne. Puxava os nervos.
Engolia com gosto.
Não importava
quanto a mãe gritasse, Guilherme não desviou o olhar. Manteve o andar trôpego
de alguém que havia machucado o pé – agora que Ellen olhava, a perna dele
parecia torta, como se ele tivesse rolado de alguma escada. Será que não tinha?
– e ele emitia o grunhido. A marca na cabeça, de onde o sangue saía,
repentinamente fez Ellen lembrar do ombro da vizinha que agora parava de
gritar, já que boa parte de seu sangue não era mais seu, mas sim do chão.
Nesse momento
Ellen entendeu o que estava acontecendo. Não, não por completo. Longe disso.
Mas Ellen soube que aquele não era um bom lugar para ficar. Ellen correu para
dentro de seu próprio portão, sendo seguida pelos mancos, porém agora mais
apressados passos do garoto que não era mais um garoto, mas um pequeno monstro.
Ela fechou o
portão na cara dele, sabendo que ele não passaria, e correu escada acima para
encontrar seu marido e seu filho. Quando voltou para a frente da casa, havia
quatro deles grudados ao portão. O garoto de perna torta, um homem de rosto
ensangüentado e cabelo bagunçado, um velho que Ellen nunca soube quem fora e
uma mulher loira de braço quebrado e pescoço rasgado. Cada um deles mantinha os
olhos esbranquiçados vidrados no vazio, mas apontados para eles. Cada um deles
esticava seus dedos ensangüentados – a mulher apenas erguia um dos braços, no
outro, era apenas o ombro que levantava. O braço pendia em algo que deveria ser
doloroso para alguém que sentisse dor – e grunhia pavorosamente. Aquela voz de
criança era a mais aterrorizante entre as quatro. Logo seriam cinco. Quando
fossem seis, a família de Ellen já teria dado um jeito de escapar e tentar
sobreviver.
Uma pena que dois
anos depois a família enfrentava aqueles grunhidos em um lugar apertado
novamente. Não eram os mesmo grunhidos. Nem era a mesma família. Não inteira,
ao menos. O marido de Ellen morrera um ano antes. Ela mesma dera o tiro que
finalizara sua vida. Ou, ao menos, sua pós-vida. Ela sofrera com isso, mas
seguiu em frente, seu filho sempre ao seu lado. Alguns amigos que encontrou
pelo caminho a acompanharam e deram força. Era uma pena que agora apenas três
deles ainda estivessem com ela.
Aquele quartinho
era pequeno. Eles tinham certeza de que do lado de fora havia pelo menos trinta
daquelas criaturas comedoras de carne. Eles sabiam que não havia o que fazer
além de esperar que eles desistissem, e que isso poderia levar dias. Eles
sabiam que não tinham provisões naquele pequeno quarto para durar dias. A única
janela era alta e em grade. Mesmo que não fosse, os grunhidos vinham de lá
também. Haveria mais alguns lá fora, esperando por eles.
Ellen e seu grupo
já haviam passado por problemas, mas nunca daquele tamanho. O grupo também
diminuiu bastante desde a última vez que enfrentaram um grupo tão grande. Dos
doze, sobravam apenas cinco, contando com Ellen e seu filho, Henrique. Ela
abraçava o garoto, encolhida no canto com ele. Os outros três também estava
sentados, encostados nas paredes, esperando. Quantas balas eles tinham? Duas
talvez? Não o suficiente. Nem para os que estavam lá fora, nem para aqueles
dentro da pequena sala. A porta de aço começava a se dobrar com os golpes
erráticos das criaturas que grunhiam. Ellen viu um dos parafusos dela saltar e
cair no chão com barulho metálico. Foi nesse momento em que ela soube que não
havia muito mais tempo. Um de seus colegas soltou uma risada. Realmente, estava
acabando.
***
Ellen acordou
sozinha. A porta estava aberta. Derrubada, na verdade. O lugar estava
igualmente sujo, mas parecia um pouco mais claro, como se a luz que entrava
pela janela e pela porta fossem o bastante para deixá-la bem iluminada. Ellen
se levantou com alguma dificuldade. Sentia-se cansada. Deu um passo. Seu corpo
estava pesado. Será que estava morta? Será que aquela era a transição para o
outro plano? Ela não tinha certeza. Ela não se lembrava de ter visto as criaturas
entrarem na sala. Ela lembrava de seu filho, e era ele que Ellen procurava.
—HENRIQUE!
Ela gritou com
toda a força que pode. Não era muito, mas o suficiente para jogar sua voz
longe. Ellen continuou caminhando. Ela saiu da loja onde eles se esconderam da
horda. Não havia nenhum monstro por perto, mas havia uma névoa densa que a impedia
de enxergar muito longe. Cinco? Seis metros? Ela não sabia ao certo. A mesma névoa a impedia de ver o céu e
qualquer coisa a seu redor. Ellen andou mais alguns metros antes de ouvir um
som. Ela não teve certeza do que ela ouvia, mas se tivesse de chutar, chutaria
que era a voz de seu filho chamando por ela.
— Henrique!
Ela gritou
novamente, e começou a correr na direção de onde o grito viera. Seus passos
cansados, mas rápidos o bastante, a guiaram para a entrada da floresta. Ela
gritou novamente.
— Henrique!
— Mamãe!
Era a voz dele.
Clara, nítida. Era seu filho. Ela deu mais um passo e pôde vê-lo na névoa. O
garoto parecia assustado, solitário. Henrique tinha algumas lágrimas nos olhos,
mas era ele. Ela deu outro passo em sua direção, as lágrimas começando a sair.
O garoto correu, sumindo na névoa.
— Henrique,
volte!
Ela ouvia o
garoto chamá-la. Correndo atrás dele, ela pôde ver que ele fugia dela. Ele
entrou então atrás de uma árvore e ela o seguiu. Foi quando ouviu um som forte e
sentiu seu corpo ser jogado para trás.
— Mamãe!
Ela ouviu
novamente. A névoa ao redor a impedia de ver, mas ela tinha quase certeza de
que seus olhos estavam apontados para o céu. As lágrimas queriam sair, mas não
saiam.
Os olhos vidrados
e esbranquiçados de uma mulher apontavam para cima. Fernando acertara-a com
força no peito. Não podia deixar que seu filho fosse pego por uma daquelas
criaturas. Ele a observou. Ela tinha muitas mordidas. Muitas mesmo. Pelo corpo
todo. Era incrível que as criaturas não haviam tirado nenhum membro dela quando
a pegaram. Ao menos nenhum por inteiro. Ele ouviu um último grunhido, aquele
maldito e aterrador grunhido que assombrava seus sonhos desde a primeira vez
que ouvira um monstro daqueles grunhir. Aquele som trazia apenas uma mensagem:
Você vai morrer.
Ele observou o
corpo coberto de sangue e mordidas dela. Por um instante ele sentiu pena.
Normalmente evitava matá-los, mas dessa vez foi generoso. Com toda a
misericórdia que podia acumular, Fernando ergueu seu machado e o desceu com
força sobre a cabeça da mulher que algumas horas antes fora uma mãe chamada
Ellen.
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